Soli Deo Gloria

Glória Somente a Deus
“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Romanos 11.33-36)
Introdução
Os quatro primeiros solas parecem ter um apelo concreto ou objetivo para a mentalidade cristã, enquanto afirmar que “glória somente a Deus” parece se manter como uma declaração subjetiva para muita gente. Talvez isso tenha mais a ver com nossa forma de pensar como seres humanos e nem tanto como cristãos propriamente dito, mas percebemos os quatro primeiros com uma definição mais objetiva. O que significa a nossa fala quando nos referimos à glória de Deus? Para alguns irmãos, basta atribuir toda honra a Deus pelos fatos ocorridos, como costumamos ouvir com o “fiz isso ou aquilo para a glória de Deus” quando alguém é elogiado por algo que fez. Isso é certo e lícito, mas é um gesto incompleto. O Rev. Ricardo Barbosa, num artigo seu, fala de todas essas questões, e complementa dizendo que a “glória de Deus não é um conceito abstrato, tampouco podemos limitá-la a algo que ofertamos a ele. Deus revela sua glória na beleza, harmonia e exuberância da sua perfeita e boa criação” e cita em seguida o Salmo 19.1que diz “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos.” Ele encerra lembrando que “homem e mulher criados à imagem e semelhança de Deus são a coroa da criação e expressam a glória” de Deus, fazendo menção ao trecho de Salmo 8.3-5: “Quando contemplo os teus céus, obra dos teus dedos, e a lua e as estrelas que estabeleceste, que é o homem, que dele te lembres E o filho do homem, que o visites? Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste.”[1]
Desenvolvimento
Quando pensamos em glória de Deus, e exclusivamente dada a ele, pensamos de forma bíblica. Precisamos nos lembrar, no entanto, que nossa natureza tentará nos carregar para longe disso, no que seremos muito auxiliados por uma vida de santidade que nos conduza dia após dia a uma transformação constante. Conta-se que o grande musicista e compositor Johann Sebastian Bach (1685-1750) teria dito que “o único fim, o único objetivo de toda música é o louvor a Deus e a recreação da alma. Quando isso se perde de vista, não pode haver mais verdadeira música, restam somente ruídos e cantarolados infernais”. Mais adiante, ele teria ainda afirmado: “sempre mantive uma finalidade à vista, quer dizer, com toda boa vontade para conduzir uma música de igreja bem regulada para a honra de Deus”. Sua biografia e sua musicografia nos mostram que ele levou a sério o que falava. Ao final de suas composições, costumava assinar com as iniciais “J.J”, (do latim Iesus Iuva, que quer dizer “Jesus, ajude-me”) e encerrava com “S.D.G” (Soli Deo Gloria).
Assim como Bach, a obra de nossa vida precisa carregar assinaturas que nos identifiquem como pessoas que vivem de forma exclusiva para a glória de Deus. Aliás, a primeira pergunta do Breve Catecismo nos interroga “Qual é o fim principal do homem?”, ao que temos a resposta “O fim principal do homem é glorificar a Deus, e gozá-lo para sempre”, ou, numa linguagem um pouco mais contemporânea, “a verdadeira finalidade de existir do ser humano é glorificar a Deus e nele ter alegria para sempre”. Para isso, logo de início, precisamos fazer uma espécie de autoexame com respeito às coisas mais simples de nossa vida cristã, como, por exemplo, estar certos de que as músicas que cantamos em culto público ou privado louvam e glorificam exclusivamente a Deus e não a nós mesmos, ou ter a nossa vida como quem testemunha publicamente a respeito da presença de Deus em nós, jamais envergonhando nosso Senhor e Salvador. Outra coisa que geralmente fazemos é nos cobrar de forma errada, como se nós tivéssemos que fazer a obra de Deus por nossa própria força e, quando não conseguimos, ficamos frustrados: fazer a obra de Deus é algo sob a confiança de que apenas somos instrumentos e ele mesmo fará os resultados brotarem, o que redundará em glória a ele mesmo. Finalmente, vamos prestar atenção: a nossa alegria está amparada no Senhor ou de alguma maneira buscamos alegria por nossos próprios esforços? Quando reconhecemos que a alegria real vem de Deus, também glorificamos a ele.
1. Nosso autoexame. Quando fazemos um criterioso autoexame com respeito às coisas mais simples de nossa vida cristã, podemos honestamente perceber se estamos mesmo prestando culto de vida a Deus ou tentando nos colocar como alvo do louvor que é devido somente a ele. Em outras palavras, a pergunta que está por detrás dessa consulta que precisamos sempre nos fazer é “quem deve ser realmente glorificado?” Ora, como crentes, não teremos dúvida em responder com nossos lábios que somente Deus deve e pode ser glorificado. Mas nossa natureza caída por vezes nos prega peças e nós podemos falar com os lábios palavras que ainda precisam de confirmação de nossa vida e nosso testemunho. A resposta à pergunta é “o Deus soberano”, ou alguma resposta que identifique que estamos falando do Deus da Bíblia. Comentando à Carta de Paulo aos Romanos, James Montgomery Boice diz que “na maioria das vezes, começamos com o homem e suas necessidades, ao passo que Paulo sempre começa com Deus e termina com Ele também.”[2] Talvez esse seja o nosso dilema, por causa de nossa realidade de criaturas caídas: primeiro nós mesmos e, sem seguida, o resto (incluindo Deus). Não é à toa que temos o adágio muito popular que diz “farinha pouca, meu pirão primeiro”, que explica adequadamente a nossa natureza. O Breve Catecismo de Westminster nos lembra que o “primeiro mandamento é: ‘Não terás outros deuses além de mim’”. Logo em seguida, na resposta à pergunta 46, vemos que o primeiro mandamento nos comanda a “conhecer e reconhecer a Deus como o único Deus verdadeiro, e nosso Deus; e como tal adorá-lo”, e em seguida o tema é encerrado dizendo o que nos proíbe o primeiro mandamento: “... negar, ou deixar de adorar ou glorificar ao verdadeiro Deus, como Deus, e nosso Deus; e dar a qualquer outro a adoração e a glória que só a Ele são devidas”[3]. Ao fazermos nosso autoexame em contraste com a Escritura e com nossos símbolos de fé, poderemos objetiva e conscientemente responder que apenas o Senhor Deus deve ser glorificado e os nossos esforços, bem como o auxílio do Espírito Santo, nos direcionam a isso.
2. Cobrança indevida. Se por um lado podemos nos colocar em certa displicência com respeito a nossa vida espiritual, por outro, podemos exagerar para o extremo contrário, agitando o nosso coração como se fôssemos capazes de fazer a obra de Deus por nossos próprios meios e esforços. Isso ocorre quando nos lançamos num ativismo nas coisas de Deus e da igreja em que estamos, sendo que isso geralmente é impensado e parte de nossa boa intenção de ser gratos a Deus por tudo que ele tem feito por nós. Mas o fato é que se a obra é feita por nós e queremos manter sobre nós a operosidade dela, um dia nosso coração poderá se tornar jactancioso e se ensoberbecer pelo simples fato de vermos a obra de nossas mãos prosperando. Podemos começar a contar as vezes em que fomos motivo de bênção, quando socorremos o próximo, quando auxiliamos na igreja, quando pregamos e vimos as pessoas respondendo: vejamos que tudo isso é bom e lícito, desde que saibamos o nosso lugar em tudo, ou seja, fomos o meio, apenas o instrumento, mas a obra e a ação no coração do outro é do Espírito Santo. Nosso coração nos engana[4] todo o tempo e precisamos estar atentos ao que ele quer nos induzir. Precisamos descansar no Senhor, aquele Deus que temos aprendido a honrar e glorificar. E por qual razão o faríamos dessa maneira? Paulo nos lembra mais uma vez em Romanos 11.36: “Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!”
3. Em quem está nossa alegria? A nossa alegria está pautada no Senhor, mas somente temos plena consciência disso conforme andamos com ele e nos habituamos a perceber sua boa mão nos conduzindo através da jornada. E a nossa alegria, que procede do Senhor, precisa estar no reconhecimento de nossa dependência dele e de seus atributos perfeitos e eternos. Quanto mais e mais corretamente adoramos a Deus, mais seremos alegres, porque a nossa alegria não se pauta nas coisas desta vida, mas naquelas que procedem do Senhor. Antes de tudo, lembremos que a alegria é parte do fruto do Espírito Santo em nossa vida[5], o que nos deixa em posição mais que privilegiada em relação às pessoas que nos cercam e que ainda não conhecem o Senhor como Salvador pessoal: diante das agruras da vida, elas tendem ao desespero, enquanto nós tendemos à esperança nas ações de Deus e em seu livramento. Essa mesma alegria que procede de Deus nos fortalece[6] e não nos deixa sucumbir diante das dificuldades da vida. Ao final de tudo, somente aqueles que se tornam filhos de Deus e nele são alegres podem honrar e glorificar a Deus de tal forma que ele aceite a adoração, o que redundará em glória ao seu santo e bendito nome. Por isso finalizamos este trecho com a resposta dada pela Escritura: “Bendito o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, que nos tem abençoado com toda sorte de bênção espiritual nas regiões celestiais em Cristo, assim como nos escolheu nele antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis perante ele; e em amor nos predestinou para ele, para a adoção de filhos, por meio de Jesus Cristo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, que ele nos concedeu gratuitamente no Amado” (Efésios 1.3-6).
Conclusão
“Um homem não pode diminuir a glória de Deus recusando-se a adorá-Lo mais do que um lunático pode apagar o sol escrevendo a palavra escuridão nas paredes de sua cela.” (C.S. Lewis). Assim éramos nós, insistindo em nossas iniciativas tortuosas, até que a luz de Cristo raiou sobre nossa vida. Não mais loucos para Deus, somos agora loucos para este mundo, mas somos habilitados agora a prestar culto verdadeiro ao Senhor, seja privado, seja público, sempre glorificando ao nosso Deus.
Encerramos esta série de reflexões sobre os Cinco Solas da Reforma com a frase latina Soli Deo Gloria nunc et semper, amen! (Glória somente a Deus, agora e sempre, amém!)
Excerto da Declaração de Cambridge sobre o Soli Deo Gloria[7]
SOLI DEO GLORIA: A Erosão do Culto Centrado em Deus
Onde quer que, na igreja, se tenha perdido a autoridade da Bíblia, onde Cristo tenha sido colocado de lado, o evangelho tenha sido distorcido ou a fé pervertida, sempre foi por uma mesma razão. Nossos interesses substituíram os de Deus e nós estamos fazendo o trabalho dele a nosso modo. A perda da centralidade de Deus na vida da igreja de hoje é comum e lamentável. É essa perda que nos permite transformar o culto em entretenimento, a pregação do evangelho em marketing, o crer em técnica, o ser bom em sentir-nos bem e a fidelidade em ser bem-sucedido. Como resultado, Deus, Cristo e a Bíblia vêm significando muito pouco para nós e têm um peso irrelevante sobre nós.
Deus não existe para satisfazer as ambições humanas, os desejos, os apetites de consumo, ou nossos interesses espirituais particulares. Precisamos nos focalizar em Deus em nossa adoração, e não em satisfazer nossas próprias necessidades. Deus é soberano no culto, não nós. Nossa preocupação precisa estar no reino de Deus, não em nossos próprios impérios, popularidade ou êxito.
Tese 5: Soli Deo Gloria
Reafirmamos que, como a salvação é de Deus e realizada por Deus, ela é para a glória de Deus e devemos glorificá-lo sempre. Devemos viver nossa vida inteira perante a face de Deus, sob a autoridade de Deus, e para sua glória somente.