Sola Fide

Somente pela Fé
“Na verdade, na verdade vos digo que quem ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna e não entrará em condenação, mas passou da morte para a vida. Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 5.24, 17.17)
Introdução
Os reformadores foram pessoas comuns, pecadores regenerados que Deus usou na história com o propósito de depurar a igreja que estava adoecida. Mas eles podem nos inspirar, pois, vivendo sob risco de morte, não abriram mão de manter firme seu testemunho. Um dos que gostaria de destacar é o escocês George Wishart (c. 1513 – 1546), pouco conhecido entre nós. John Knox (1514 – 1572), fundador e sistematizador do presbiterianismo, por exemplo, foi seu discípulo, e aquele que narra parte da história de seu mestre. Wishart teve uma curta, porém ativa vida, em que gastou seus últimos dois anos como pregador itinerante indo de leste a oeste por toda a Escócia, pregando por toda parte contra os desmandos de Roma e do papado, contra abusos cometidos por igrejas em seu tempo, contra as heresias da igreja medieval, o que, obviamente, levantou contra ele muita perseguição e ódio por parte do clero estabelecido. Como todo bom crente, ele tinha vida piedosa conectada a bons estudos teológicos e, em 1536, traduziu para o inglês a primeira versão da Confissão Helvética. Em 1546 ele foi preso e rapidamente julgado e condenado a mando do Cardeal Beaton e a sentença foi também rapidamente executada: foi pendurado em forca enquanto seu corpo era queimado. Mas sua morte não foi em vão: em apenas dois anos de ministério itinerante, os ensinamentos de Calvino e Zwinglio se tornaram populares na Escócia, ao ponto de John Knox, mais à frente, encontrar eco na população ao implementar o presbiterianismo. Em seu julgamento, ele se recusou a reconhecer a confissão auricular como sacramento, negou o livre-arbítrio, reconheceu o sacerdócio universal do crente e negou que Deus somente possa ser alcançado no altar através da mediação do sacerdote. Ele proclamou abertamente que a verdadeira igreja estaria onde a Palavra de Deus fosse fielmente pregada e onde os dois sacramentos (Batismo e Ceia do Senhor) fossem corretamente administrados. A esta definição de igreja, algum tempo mais tarde seria acrescentada a terceira parte: a disciplina na igreja.
“Tão logo a moeda no cofre tilinte, a alma sai do Purgatório”. Essa frase curta e direta era a propagado oficial de Johann Tetzel (1465-1519), um frade dominicano e pregador que tinha sido autorizado a conseguir dinheiro para construir uma nova basílica em Roma. Ele ficou conhecido pela concessão de indulgências em troca de dinheiro, ou seja, o perdão do pecado, algo fortemente contestado por Martinho Lutero. Mas isso fazia parte de seu esquema para o levantamento de fundo, uma espécie de venda aberta da salvação. Muito daquilo que estimulou Lutero ao redigir suas famosas 95 teses tem a ver com as ações de Tetzel. Na de número 27, Lutero combate frontalmente a fala de Tetzel ao dizer “Pregam doutrina mundana os que dizem que, tão logo tilintar a moeda lançada na caixa, a alma sairá voando [do purgatório para o céu]”. A de número 28, por exemplo, dá a resposta e diz: “Certo é que, ao tilintar a moeda na caixa, pode aumentar o lucro e a cobiça; a intercessão da Igreja, porém, depende apenas da vontade de Deus.”
Desenvolvimento
Eram tempos difíceis para a vida cristã comum. Os fieis eram enredados em um sem-fim de elementos que os tornavam prisioneiros de um sistema que guardava certa distância daquilo que a Escritura nos mostra como sendo a sã doutrina e a vida em comunhão na igreja. Ainda mencionando Louis Berkhof, ele entende que duas coisas foram as de maior influência para o início da obra de reforma encabeçada por Martinho Lutero: tanto o sistema de penitências quanto o forte tráfico de indulgências teriam causado tamanha repulsa no reformador que ele deflagrou a sua caminhada em direção à Reforma.[1]
Desde muito cedo, ainda em 1513, Lutero teve contato com o texto de Paulo aos Romanos, e as convicções do então religioso católico estavam balançadas. Nesse tempo, registra-se que Lutero tenha passado por tempos de agitação e tenha nutrido verdadeiro asco pelos poderes eclesiásticos que ele passou a conhecer mais de perto, particularmente quando viu o comércio da salvação e a exploração de gente muito pobre com fins a enriquecer cada vez mais o sistema clerical e a executar seus projetos grandiosos, dentre os quais a Basílica de São Pedro, no Vaticano. A essa altura, mesmo inconformado com as questões ao seu redor, Lutero podia pregar livremente, e a pregação pautada nas Escrituras começou a atrair multidões para ouvi-lo na Capela de Wittenberg. Quando chegamos a 1517, a pregação bíblica de Lutero já ecoava em muitos corações que passaram a entender mais da verdade bíblica e ansiar por mudanças profundas. Berkhof ainda registra a respeito do apego de Lutero ao texto de Romanos 1.17 que
Mesmo profundamente imerso em obras penitenciais quando com base em Romanos 1.17, raiou-lhe verdade que o homem é justificado exclusivamente pela fé, e ele pôde entender que o arrependimento, exigido em Mateus 4.17, nada tem em comum com as obras de preparação postuladas pelo romanismo; antes, o arrependimento consiste de real contrição íntima do coração, como o fruto da graça de Deus com exclusividade.[2]
Os textos acima são muito emblemáticos e nos dizem “visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé.” (Romanos 1.17) e “Daí por diante, passou Jesus a pregar e a dizer: Arrependei-vos, porque está próximo o reino dos céus.” (Mateus 4.17). Joel Beeke defende a ideia de que a “frase ‘justificação pela fé somente’ foi a chave que abriu a Bíblia para Lutero. Ele veio a entender cada uma dessas quatro palavras em relações às outras à luz da Escritura e do Espírito”. Assim, temos o início do processo pelo qual várias algemas começavam a ser abertas e os crentes podiam começar a sonhar com uma vida cristã verdadeiramente livre de elementos de religiosidade que nada mais tinham a ver com a expressão da Escritura.
Como diz Timothy George, a justificação somente pela fé em Cristo foi um divisor das águas entre Igreja Católica Romana e a Igreja Protestante que se modelava naqueles dias, pois o protestantismo nasceu da luta pela doutrina da justificação pela fé somente. Para Lutero, essa não era apenas mais uma doutrina entre tantas outras, mas o “resumo da toda doutrina cristã”, o artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai[3]. Começa a trajetória da Reforma como a conhecemos, sabendo que antes de Lutero vieram outros heróis da fé que deram a vida pela liberdade de louvar a Deus com inteireza de alma sem a prisão da religiosidade papal da Idade Média. Lutero, no entanto, permanece como aquele que sistematizou os conceitos de justificação pela fé somente, o que seguimos até os dias de hoje.
Depois da Reforma, a doutrina da justificação pela fé somente (Sola Fide) torna-se o grande princípio material, tendo sido o elemento fundamental para a correção do que passou a ser crido com o tempo, de que justificação e santificação se confundiam e eram praticamente a mesma coisa. Em outras palavras, a teologia vigente entendia que a salvação era constante e progressiva, ao mesmo tempo em que sobre ela havia garantias dadas pelo pertencimento à Igreja Católica. Algum tempo após o início da Reforma, no Concílio de Trento (1547), Roma responde aos “solas” da Reforma e, particularmente quanto ao Sola Fide, apresenta que os pecadores são justificados pelo seu batismo, que a justificação é pela fé em Cristo e pelas boas obras de uma pessoa, que os pecadores não são justificados unicamente pela justiça imputada de Jesus Cristo. Além disso, diz que uma pessoa pode perder sua salvação (ou seja, os efeitos da justificação).
No entanto, a Reforma diferencia justificação de santificação, crendo que a “justificação é um ato judicial de Deus, no qual ele declara, com base na justiça de Jesus Cristo, que todas as reivindicações da lei são satisfeitas com vistas ao pecador”[4], isso porque é nesse ponto que entendemos o perdão dos pecados e o favor divino que vem sobre a vida daquele que antes era inimigo de Deus, tornando-o seu filho. Confirmando tudo isso, a pergunta 33 do Breve Catecismo de Westminster interpela: “Que é justificação?”, ao que se segue a resposta: “Justificação é um ato da livre graça de Deus, no qual Ele perdoa todos os nossos pecados, e nos aceita como justos diante de Si, somente por causa da justiça de Cristo a nós imputada, e recebida só pela fé.” Berkhof resume que a justificação remove a culpa do pecado e restaura o pecador ao seu estágio e privilégios de filho de Deus, que ela acontece por um ato jurídico de Deus em nosso favor, que acontece uma vez por todas, sem que possamos dela decair e que todo o mérito repousa sobre Cristo e sua obra vicária. Assim, conclui ele, enquanto Deus, o Filho, promove a obra da justificação, “em termos de economia, Deus, o Pai, declara justo o pecador, e Deus, o Espírito Santo, o santifica.”[5]
Conclusão
O conceito reformado de “somente pela fé” tem inúmeras aplicações práticas. Nós cremos que tudo o que somos em nossa relação com Deus depende exclusivamente dele, sem que tenhamos qualquer modo de participação que nos integre a Deus por nossos gestos, obras, ou quaisquer outras coisas que não sejam ele próprio. Quando olhamos em derredor e vemos igrejas que se denominam evangélicas praticando atos que depõem contra esse princípio, podemos afirmar que ali está ou uma igreja que não é totalmente sadia ou, mesmo, uma comunidade que não é uma verdadeira igreja. Nenhum de nós pode chegar a Deus através de outra pessoa ou outros métodos: disso já sabemos. Por isso, tenhamos cuidado quando alguém oferecer bênçãos adicionais para quem ofertar além de sua capacidade, através de votos e campanhas com fins espúrios. Tenhamos cuidado com práticas místicas, como entender que a oração do pastor é “mais forte” que a dos demais irmãos, ou a prática de unção de objetos, animais, casas, etc. Não imaginemos que o templo é um lugar santo ou sagrado: por mais apreço que tenhamos aos templos separados para o culto público, não é ali que está a manifestação da glória de Deus: ela deve estar em cada um de seus filhos.
A nossa fé é livre de amarras, presa somente à graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Somos servos, não de religiosidades ou sistemas, mas de Deus. Nesse sentido, torna-se mais fácil entender como George Wishart, por exemplo, perdeu a vida em defesa de sua liberdade de fé: o sangue dos mártires da Igreja Primitiva e dos mais de 2 mil anos de história da igreja não pode ser esquecido. Que Deus nos ajude e que nós façamos a nossa parte sem jamais nos esquecermos que a justificação é somente pela fé.
Excerto da Declaração de Cambridge sobre o Sola Fide[6]